domingo, 3 de dezembro de 2017

Extracto | do conto A CHEFE E OS HOMENS, do livro O HOMEM QUE PLANTAVA AVES, de Gociante Patissa

Adorada por mulheres que viam nela um ícone da ascensão feminina na vida, a Comissária era ao mesmo tempo alvo de intrigas. Intrigas da concorrência, mas também de alguns ressabiados. Destes há sempre. Era acusada de impingir ideias de brancos e desprezos lá da China à nossa cultura africana, como aquilo de impedir que as padarias familiares se prestassem à cozedura de filhos na quantidade que bem entendessem. A má influência só podia derivar do nível académico da chefe, pois estava visto, segundo a sabedoria popular moderna naquele meio difundida, muito estudo na cabeça de uma mulher faz mal. E nesse quesito a chefe tinha o Ensino Médio, numa comuna em que o maior nível findava na sexta classe.
Média de estatura e abonada na massa corporal, não tardou a ser alcunhada de «Superfofinha», no que pode ter contribuído o seu estilo de vida arisco.
Rapidamente as informações foram despachadas à direcção provincial para verem a sua comuna livre de mulheres que odeiam homens, quando eram estes, mais do que aquelas, quem suportava no ombro o peso da revolução e da guerra. Se ainda os kimbundu[1], que mandavam naquilo tudo, diziam no provérbio que «Tanga imoxi, utuxi; mona umoxi umba[2]», assim já quem pensava uma simples Comissária que era para mandar na tabuada da cama dos outros?!
Mas se o caro leitor me permite um toque de justiça neste emaranhado de acusações, aqui recorro à reminiscência para ilustrar o único caso que despoletou tudo e estava a ser empolado, ainda do tempo em que era só vice. Foi assim:
— Camarada-Vice! Camarada-Vice! Você, que é mulher, acha que a minha esposa vai sobreviver?
— A tua esposa está muito mal, camarada. Continua em coma profundo na reanimação.
— O que estão a fazer é certo?! Vê só, Camarada-Vice, vê só! Desde anteontem que não me deixam chegar perto da mulher. Desconfiam de quê? Será que o amor faz mal?
— É preciso ter calma e deixar os técnicos fazerem o trabalho médico. Ela está grave…
— Mas, então a minha mulher que passo a vida a lhe ver nua, hoje vai ter vergonha de me ver só porque está grave? Vai esconder mais o quê?
— Tem que confiar no tratamento, homem! E como está o bebé?
— E eu lá só homem de um filho por barriga? São gémeos, casal!
— Estão bem?
— Está tudo! Aquela camarada está a lhes tomar conta como mãe. Obrigado!
— Ainda bem. E não está a ser fácil mobilizar quadros para este papel de família substituta no vosso caso. Umas camaradas estão colocadas em vossa casa com outros filhos menores, as demais aqui de plantão a cuidar dos recém-nascidos, já sem falar da mãe que está nos cuidados intensivos.
— Obrigado, Camarada-Vice, a Família e Promoção da Mulher vai receber subsídio da mão do Poderoso. Até ainda estou alegre só de olhar para os meus bebés. A camarada já viu o instrumento do menino? Se me sair eu, como pai, aos treze anos já vai acompanhar a namorada na consulta de gravidez.
— Isso também seria demais, ó camarada!
— Mas demais como, Camarada-Vice?! Eu falo mesmo: pode faltar família, trabalho, dinheiro, pode faltar tudo, mas sou muito homem! Tenho equipamento para isso! Grupo «O»[3]. Até não precisa esperar o fértil na fábrica da mulher!
— Na primeira complicação de gravidez ectópica, ainda foi de quantos meses?
— Seis.
— E o irmão mais velho?
— Nove.
— Estás a ver? Procurem pensar no planeamento...
— Ela não aceita!
— Não?!
— É confusão.
— E outros métodos?
— Ela é mesmo assim; mínimo toque, já fica grávida.


[1] Grupo etnolinguístico da região abaixo do Rio Kwanza, que inclui as províncias de Luanda, de Kwanzas Norte e Sul, e de Malanje. 
[2] Ter um só pano equivale a andar nu, um só filho equivale a não ter nenhum (provérbio Kimbundu recolhido por António de Assis Júnior). 
[3] Está por se saber a paternidade crença segundo a qual aqueles que pertencem ao grupo sanguíneo O são de fertilidade infalível. Então, mesmo sem buscar confirmação médica, aquele que faz muitos filhos ou  que tenha fracassado na tentativa de um aborto iria reivindicar-se como sendo daquele grupo sanguíneo.
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